Incidentes ocorridos no Mar Vermelho ilustram os perigos da proliferação de "bandeiras de conveniência"
Jacqueline Smith, coordenadora marítima da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes – publicado originalmente pela Al Jazeera.
Em 13 de abril, as forças navais do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã apreenderam, no Estreito de Ormuz, um navio de contêineres de bandeira portuguesa, o MSC Aries, e detiveram sua tripulação. A embarcação é operada pela Mediterranean Shipping Company, com sede na Suíça, a qual, por sua vez, a arrenda da Zodiac Maritime, com sede em Londres, de propriedade do bilionário israelense Eyal Ofer. Os 25 membros da tripulação são cidadãos das Filipinas, do Paquistão, da Índia, da Estônia e da Rússia.
O incidente foi o mais recente agravamento das tensões nas vias navegáveis do Oriente Médio. Nos últimos meses, os houthis do Iêmen têm atacado navios que eles consideram ligados a Israel e seus aliados.
Em 6 de março, um desses ataques matou três marinheiros do navio True Confidence. Dois deles eram cidadãos das Filipinas e o terceiro era vietnamita; o restante da tripulação, que era das Filipinas, do Vietnã, do Sri Lanka, do Nepal e da Índia, foi salvo por um navio da marinha indiana. Os houthis alegaram que o True Confidence era um "navio americano", mas a embarcação tem bandeira de Barbados, pertence a uma companhia registrada na Libéria e é operada por outra de propriedade grega.
Esses incidentes ilustram a vulnerabilidade da gente do mar em vias navegáveis inseguras, e também devido à falta de regulamentação global do setor de navegação. A razão pela qual tantas jurisdições diferentes estão envolvidas em uma única embarcação é que as regras atuais permitem que as companhias e as operadoras de transporte marítimo se registrem em diferentes países e contratem tripulantes de qualquer nacionalidade.
Naturalmente, muitas companhias escolhem jurisdições que oferecem poucas regulamentações trabalhistas e fiscais e, portanto, pouca responsabilidade pelo bem-estar e pela segurança das tripulações a bordo dos navios registrados com suas bandeiras. As companhias também contratam tripulantes de países onde não é fácil encontrar empregos bem remunerados, o que pode significar que a gente do mar reluta mais em se manifestar por medo de perder sua renda.
Essa prática, chamada de "bandeiras de conveniência", começou nos Estados Unidos na década de 1920, quando o governo proibiu a produção, o transporte e a venda de álcool, levando alguns proprietários de navios a registrarem suas embarcações no Panamá para evitarem essas restrições.
A prática persistiu depois que a proibição foi suspensa, pois as companhias de transporte marítimo americanas perceberam os benefícios de uma regulamentação conivente. Em 1948, o então secretário de Estado dos EUA, Edward Stettinius, trabalhou com o governo da Libéria para estabelecer o cadastro de embarcações do país como uma joint venture. Até hoje, o cadastro de embarcações liberiano é operado nos Estados Unidos, mais precisamente no estado da Virgínia.
A minha organização, a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes, iniciou sua campanha contra as bandeiras de conveniência em 1948, em resposta ao estabelecimento do cadastro de embarcações liberiano, uma vez que ele impunha poucas restrições aos proprietários de navios.
O setor de navegação está colhendo os benefícios advindos da facilidade de serviços de baixo custo e baixa burocracia fornecidos pelos estados que “alugam bandeiras”. Isso significa baixa regulamentação, taxas de registro baratas, impostos baixos ou inexistentes e a liberdade de empregar mão de obra barata proveniente do mercado de trabalho global. Nós as chamamos de bandeiras de conveniência porque é conveniente para os proprietários de navios que eles não tenham nenhuma ligação genuína com essa bandeira. Tal fato ocorre apesar de a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar afirmar que deve existir um "vínculo genuíno".
O cerne do problema para a gente do mar é que os proprietários de navios escolhem bandeiras de países que eles sabem que terão pouco ou nenhum interesse em fazer cumprir as normas de proteção trabalhista. A operação é uma grande fábrica de dinheiro. Os proprietários pagam para que seus navios sejam registrados nos cadastros de embarcações das bandeiras escolhidas. Por sua vez, para os cadastros de embarcações é um mau negócio impor normas rigorosas de segurança e bem-estar, pois elas reduzem os lucros.
Para a gente do mar, isso pode significar salários baixíssimos, péssimas condições a bordo, alimentação inadequada e falta de água potável, além de longos períodos de trabalho sem um descanso adequado.
Como a federação sindical internacional que somos, trabalhamos incansavelmente ao lado dos sindicatos filiados para promover e defender os direitos dos trabalhadores em transportes por meio da negociação coletiva e do fortalecimento da regulamentação internacional e nacional.
O nosso inspetorado global, composto por mais de 130 inspetores em turno integral – muitos dos quais já foram gente do mar –, verifica navios com escala em mais de 120 portos em 59 países, para garantir que a gente do mar tenha condições dignas de remuneração, trabalho e vida. E, ainda assim, as práticas abusivas persistem. Recebemos diariamente pedidos de socorro de gente do mar e vemos, repetidas vezes, o núcleo mais podre do setor de navegação.
Ouvimos inúmeras histórias de gente do mar abandonada, sem remuneração por meses ou até anos, e com direitos violados com total impunidade.
Na semana passada, tivemos notícias de um tripulante indiano que ainda estava retido. "Não recebo salário há mais de três meses, mas há alguns membros da tripulação que não são pagos há até sete meses", denunciou. "A empresa não fornecia mantimentos nem água potável. Às vezes, estávamos apenas pescando para sobreviver. Todos os membros da tripulação estão ficando deprimidos, e nossas famílias estão se endividando para sobreviver."
"Não recebi nenhum salário até agora [há cinco meses], gostaria de informar que temos escassez de alimentos e combustível o tempo todo, estamos sofrendo o tempo todo (...) e por favor, preciso do seu apoio", nos contou um marítimo indonésio no mês passado.
Muitos trabalhadores do setor marítimo estão enfrentando dificuldades devido ao roubo de salários e a pagamentos abaixo do estipulado. O salário mínimo para gente do mar em navios de bandeira de conveniência cobertos por acordos coletivos é de cerca de US$ 1.700 por mês. Em navios de bandeiras de conveniência sem um acordo coletivo às vezes há gente do mar navegando por US$ 400 a US$ 600. É melhor nem tentar imaginar o pouco a que isso equivale em vencimentos por hora. E mesmo com um salário tão baixo, as companhias ainda atrasam ou retêm salários regularmente.
No ano passado, inspetores da ITF recuperaram mais de US$ 54 milhões em salários não pagos roubados da gente do mar por proprietários de navios que operam predominantemente sob bandeiras de conveniência. Recuperamos essa quantia por meio de inspeções de rotina que examinam as contas salariais e os contratos de trabalho, em que é muito comum encontrar discrepâncias. A maioria dos proprietários de navios honra os contratos da tripulação quando pressionados. Mas também podemos, se necessário, coordenar com o controle estatal dos portos e com os sindicatos dos portuários para garantir que um navio não possa navegar até que sejam pagos os salários da gente do mar.
O que estamos vendo acontecer no Mar Vermelho expõe como o sistema de bandeiras de conveniência pode levar gente do mar a arriscar a vida navegando por áreas inseguras, sem poder se defender. Quem socorrerá a tripulação de navios com bandeira do Panamá, da Libéria e das Ilhas Marshall?
"A nossa companhia continua transitando pelo Mar Vermelho, mesmo sendo muito perigoso", nos contou um marítimo filipino. "Acabamos de passar pelo Mar Vermelho (...) [e] durante esse tempo ouvimos muitas embarcações pedindo ajuda a um navio de guerra porque estavam sendo atacadas (...) As pessoas aqui estão muito preocupadas (...) Não conseguimos dormir muito bem pensando em nossas vidas."
Informes indicam que o desvio de rotas do Mar Vermelho aumentou a lucratividade para alguns no setor de navegação. Isso se deve aos custos mais altos associados a rotas mais longas e, consequentemente, a uma maior demanda de transporte marítimo, pois há menos navios disponíveis. No entanto, ainda vemos companhias dispostas a continuar arriscando a vida da gente do mar.
É falso sugerir que os negócios são simplesmente assim. Trata-se de uma escolha.
Isso só poderá mudar se houver mais transparência no setor de navegação e, conforme estipulado pela legislação internacional, houver um "vínculo genuíno" entre o verdadeiro proprietário de uma embarcação e a bandeira que ela ostenta. A Organização das Nações Unidas e seus órgãos relevantes, a Organização Marítima Internacional e a Organização Internacional do Trabalho, também devem esclarecer melhor o que significa um vínculo genuíno. Somente assim os sindicatos e as autoridades poderão realmente responsabilizar os proprietários de navios e os estados de bandeira.
Nunca haverá verdadeira igualdade de condições enquanto continuarem operando bandeiras de conveniência com padrões mais baixos do que os cadastros de embarcações nacionais tradicionais. Não se pode permitir que os cadastros de bandeira operem como empresas.
Até lá, os direitos da gente do mar continuarão a ser violados com impunidade. É hora de fechar o vácuo jurisdicional que existe no mar.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade da autora e não refletem necessariamente a posição editorial da Al Jazeera.